STF, facções e milícias: o Rio na mira de um estado paralelo

Em 05/06/2020 o ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, atendeu a um pedido do Partido Socialista Brasileiro – PSB e proibiu, em decisão liminar, quaisquer operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro. Posteriormente, agora em 03/02/2022, após uma incursão de desvairadas e espalhafatosas festividades por todos os jornais de notícias e a transcorrência do período de recesso para o tráfico, o plenário realizou novo julgamento sobre a medida (ADPF 635) e determinou, entre outros pontos, que o Estado encaminhasse um plano visando a redução da letalidade e a aplicação dos direitos humanos durante a atuação das forças de segurança ostensivas nas favelas dominadas por facções e milícias.

O texto da medida foi acompanhado de duras críticas pelo relator às forças de resistência, já desmoralizadas pelas ávidas constatações de que, com o seu afastamento, o número de mortes a oeste dos guarda-sóis do posto 9 diminuíram. No ensejo, foi estabelecido que, enquanto pacificadores, os agentes do estado devem se atentar ao uso progressivo da força, não devendo cogitar recorrerem-se à armas de fogo enquanto este não houver sido cumprido. Instrução certamente recebida com alento pelos líderes do Comando Vermelho, à espera por incursões nas ruas repletas de soldados do tráfico na região – a quaestio facti memora o rebuliço da defensora pública que viralizou após instruir um grupo de policiais em evento da corporação: “vocês só podem atirar a partir do momento em que vocês forem alvejados” -.

Todavia, diferentemente do que percebe a defensoria e os canais de notícia, a constatação óbvia de que com menos operações, menos mortes ocorreram nas favelas do Rio – afinal as mortes advém do conflito -, só execra a total ignorância e indiferença para com e real situação das regiões ocupadas quanto ao completo domínio por terroristas fortemente armados e, de igual sorte, com a (in)capacidade atributiva da polícia no terrível contexto – o que em nada deslegitima o sentimento de solidariedade e revolta quanto à morte de inocentes -. Deste modo, a utilização de bordões combinados ao reducionismo do patrulhamento ostensivo, submetido a um cenário calamitoso, como “assassino” é o perfeito sofisma pré-socrático de mau caratismo jornalístico, que desrvirtua o olhar dos efeitos adversos e absolutamente preocupantes da “política de cabresto ” vigente. 

O contexto de calamidade é tal que as polícias do estado do Rio de Janeiro apreendem em média 3 fuzis por dia desde a retomada de operações no início deste ano, mostrando um aumento de quase 100% em comparação aos valores de 2022. Esses dados se constroem pela mobilização acirrada dos criminosos entre as diferentes regiões cariocas frente à intensificação da guerra entre facções criminosas pelo controle de mais e mais territórios, que faz com que pelo menos 20 comunidades vivenciem uma situação de sítio sob o seu domínio.

No total, quase 4 milhões de pessoas vivem em áreas dominadas pelo crime organizado na região e, infelizmente para aqueles que pensam que ´o Rio continua lindo´ mas só conhecem as suas imediações até onde as areias tocam os pés, 57% de toda a cidade é controlada por milícias.

Segundo a antropóloga Jaqueline Muniz: “essa disputa territorial armada (entre as facções) já estava ensaiada desde a Covid”, – sendo certamente facilitada pelo “cessar fogo” de Fachin – “onde foi possível acumular armamento, meios e outros recursos para resgatar territórios perdidos”. “A capacidade hoje de enfrentamento entre os grupos aumentou, o que torna o conflito ainda mais violento”. 

Agora, no recente julgamento da matéria, a resposta do ministro à situação, seguido com unanimidade pelo colegiado, foi a determinação da criação de um Grupo de Trabalho (GT) – polícia cidadã, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, para acompanhar o cumprimento da decisão liminar. Assim, o grupo formado por advogados, defensores públicos, antropólogos, sociólogos, etc; entregou recentemente o primeiro relatório acerca da letalidade policial no estado para a presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber.

Conforme a Gazeta do Povo e o próprio relatório, “a principal medida apresentada no documento é a criação de uma “comissão independente de supervisão da atividade policial”, vinculada ao CNJ, “com maioria de membros da sociedade civil, especialmente organizações de direitos humanos, movimentos de favelas e de familiares de vítimas e especialistas”. O objetivo desse novo órgão seria monitorar, acompanhar e supervisionar a implementação de medidas de redução da letalidade policial – exatamente como já fazem órgãos como o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

O documento pede, dentre outras coisas, o compartilhamento total de informações sobre os mortos em confronto com a polícia, incluindo as circunstâncias da morte e a “descrição detalhada dos esforços assumidos pelos agentes policiais para mitigar o emprego do uso da força”. O relatório pede até mesmo acesso dessa nova comissão ao banco de dados da Polícia Civil, que hoje é restrito apenas à própria Polícia e ao próprio Ministério Público. A medida seria problemática porque, em muitos casos, grupos de vítimas das ações da polícia, que fariam parte da “comissão independente”, têm laços estreitos com organizações criminosas que atuam nas favelas dominadas pelos grupos”.

Ato contínuo, além das visitas aos batalhões de choque e operações especiais, o Grupo de Trabalho olvidou comparecer ao quartel general da PMERJ e ao Centro Integrado de Comando e Controle que, durante sobrevoo da faixa da linha amarela, teve de fazê-lo em zig zag para que a aeronave não fosse alvejada pelos criminosos que dominam o local. Em comento, também recebeu pareceres de secretarias de segurança, como o parecer técnico do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que suplicou por mais armamentos pelo pleito combativo dos sucessivos aprimoramentos do arsenal dos terroristas, mas foi descreditado por “não atender aos requisitos técnicos mínimos para que possa ser caracterizado como um Plano de Redução da Letalidade Policial”.

Conforme explicou o coordenador do GT, Conselheiro João Paulo Schoucair, “Os relatórios produzidos pelo Grupo de Trabalho, apesar das diferentes perspectivas, revelaram consenso sobre uma premissa que recorta essas distintas visões: políticas públicas baseadas em ações policiais repressivas desacompanhadas de intervenções de natureza preventiva não têm sustentação de longo prazo no incremento da segurança social” – ora, não parece nada forçoso supor que a desarticulação – enfraquecimento – pelo enfrentamento das quadrilhas e facções criminosas, conciliada à apreensão de seu armamento e fonte de renda, seja uma medida preventiva razoável à atividade desses mesmos grupos e, portanto, ao próprio crime.

Lamentavelmente, a consubstanciação do próprio elemento da soberania do Estado remonta a sua capacidade de aplicar coercitivamente a sua jurisdição. Dessa forma, como bem preconiza Hans Kelsen, o Estado garante as suas leis ao passo que ninguém mais seja capaz de sobrepor-lhe em poder, superando a sua força, e fazendo valer leis diversas. Essa lastimável e preocupante reflexão aduz a atualidade nas dezenas de comunidades controladas pelo tráfico e suas facções criminosas, onde impera o estado paralelo e o Tribunal do Crime, cujos julgadores, acusadores e executores são uma mesma pessoa, e a pena capital é institucionalizada e incentivada. Assim, amparado pela permissividade, o Comando Vermelho já começa a promulgar os seus próprios decretos de lei, institucionalizando regras da facção ao passo que cria uma nova geração de subordinados e representantes do sistema.

Em Volta Redonda, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE, órgão do Estado do Rio de Janeiro que executa medidas judiciais aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei, já tem de conviver com a aplicação do manual elaborado pelo Comando para os jovens residentes da instituição. Dentre os diversos itens de convivência estão previstos “Não caguetar, não cobiçar a mulher do próximo, falar a verdade mesmo que custe a vida, não conspirar, respeitar a tia da cozinha, a tia da limpeza, as enfermeiras e não abrir sorriso para verme (agentes do Departamento)”.

Alfim, com o aumento em 387,3% das áreas sob o domínio de grupos paramilitares nos últimos 16 anos (GENI), o incremento constante da violência e a recorrente descoberta de novas rotas para vazão de drogas no Rio, é amedrontador o subjugo das forças de segurança pública pelas próprias instituições que deveriam resguardar a ordem. Acompanhados de um enorme aparelhamento do estado criminoso, o Grupo de Trabalhos terá de arcar com os resultados da permissividade quanto ao fortalecimento deste à medida que as facções que ostentam fuzis e cadáveres em covas rasas fazem de refém o Rio de Janeiro.