Chacinas e o seu ponto de origem

Pandemias, crises econômicas e desastres naturais, somados, já consubstanciam um montante infeliz de patologias da realidade brasileira dos últimos anos. Junto a isso, sobre esse panorama de trauma inatenuável, questiona-se agora se uma nova era, a era dos atentados, começa erudir no horizonte. 

Essas ocorrências, que se quer podem ser aludidas em palavras, atingem o âmago da nossa humanidade, e mesmo em um país como o Brasil, marcado por tanta violência, conseguem romper a curva do repulsivo e quase fomentam no desacreditar do próprio bem. Por verdade, esse sentimento, que se constitui por algo que parece sobrepor-se ao lamentável chegando ao incompreensível, transfigura o nosso entendimento do que é o homem em seu estado natural e, com efeito, mesmo Hobbes seria incapaz de imaginar que a sua máxima poderia ser ilustrada com tamanha vilania.

Efetivamente, essas ocorrências vem aumentando em uma velocidade mais alarmante do que a sua própria natureza e, concomitantemente, como durante o início de qualquer tragédia, acumulam-se as especulações sobre as fontes de sua materialização. Fato é que, apenas no último ano, o número de registros de ataques no Brasil foi maior do que nos dez anos anteriores.

Telma Vinha, educadora e professora na Universidade Estadual de Campinas, em entrevista concedida à CNN, apontou a disseminação de discursos de ódio e acesso a armas de fogo como razão para aumento do número de atentados. Similarmente, a socióloga Carolina Ricardo, do Instituto Souza da Paz, entende que a exposição à violência, possibilitada pelas redes sociais, é inegavelmente a razão do fato. Já para Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC, a manifestação dessas lastimáveis ocorrências está ligada a uma memória nunca superada da ditadura militar.

Razoáveis ou absurdas, as suposições invariavelmente parecem sustentar-se na influência de fatores que estão dispersos por todo o meio social mas que, para além dos próprios assassinos, atingem todos aqueles que estão à sua volta – afinal, o acesso à informação e exposição à violência não é uma exclusividade de sócio-terroristas -. Sendo assim, a diferença primordial parece residir propriamente não sobre os fatores de influência que acometem o corpo de indivíduos mas, essencialmente, na razão do seu efeito bárbaro em alguns de forma distinta à quase todos. 

Em 2011 o Brasil vivenciou o pior atentado da sua história quando um atirador invadiu uma escola em Realengo, no estado do Rio de Janeiro, deixando 12 crianças mortas. O autor da barbárie era filho adotivo e fora recolhido ainda bebê de sua mãe biológica, que sofria de problemas mentais e já havia tentado o suicídio.

No início de abril deste ano, os pequenos Bernardo Cunha Machado, Bernardo Pabst da Cunha, Larissa Maia Toldo e Enzo Marchesin Barbosa perderam a vida em um ataque a uma creche em Blumenau e, analogamente, o autor da tragédia não tinha o nome do pai em seu documento de identidade.

Em Suzano, São Paulo, um dos assassinos do atentado que matou oito pessoas não sofria bullying mas precisou ser criado pelos avós por ambos os pais serem dependentes químicos. 

Dentro dessa multiplicidade de fatores que envolveram todos os elementos e as suas circunstâncias, a análise dedutiva dos fatos, partindo da sua proposição geral – indivíduos psicologicamente vulneráveis-, permite construir silogisticamente uma dedução que leva ao fator comum claro, o fato específico que se subverte como elemento indispensável e anterior à barbárie, e vai além de armas, videogames e redes sociais, o problema da decadência da estrutura familiar.

A família tem a sua importância reconhecida e resguardada pelo texto constitucional no seu artigo 26, sendo, conforme a norma, “a base da sociedade”. Mais do que isso, pelo entendimento de Ana Maria Falsarella, ela é a “célula de reprodução social por excelência” que assegura o bom andamento da sociedade civil e, portanto, necessária para a estabilidade do Estado. É por ela que a criança dá os seus primeiros passos para as relações com outras pessoas, é ela que molda sua personalidade e seu crescimento cognitivo. Em outras palavras, é pela família que se constituem os valores.

A desconstituição dessa estrutura, um fenômeno social crescente e incontestável, vem sendo acompanhado, quando tanto, de tentativas de compensação por regozijos pelos pais ao passo que terceirizam a criação dos seus filhos para os videogames, a televisão, a internet ou mesmo a escola, onde a criança/ jovem se desenvolve à mercê do acaso. 

A predominância da “ideologia do amor”, do “tudo dar e tudo ter”, tem trazido aos pais uma dificuldade em assumir o lugar da lei. No lugar dessa, tem se soerguido a filosofia da vitória, felicidade invariável, prazer e amor eterno, ou mesmo absolutamente nenhuma dessas. No seu lugar, se manifesta a escuridão do efetivo desamparo e autotutela moral que, mesmo com alguma condição material, por evidente, não são suficientes para desmentir o atual quadro de depressão e melancolia da nova geração e sustentar a criação de alguma personalidade individual.

Um estudo feito pelo Ministério Público de São Paulo em 2018 concluiu que apenas 17% dos adolescentes autores de atos infracionais internados na Fundação Casa moravam com ambos os pais antes de serem colocados nas instituições em que cumpriram medidas socioeducativas. Em 2006, ao fazer uma análise semelhante, uma tese de doutorado da Universidade de São Paulo concluiu que apenas 30% dos adolescentes que cometeram atos infracionais vinham de famílias estáveis. “Fica evidenciado que a ausência paterna tem potencial para gerar conflitos no desenvolvimento psicológico da criança”, concluíram dois psiquiatras do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, em um estudo que compilou as conclusões de outros artigos sobre o tema.

Fora do Brasil, estudiosos identificaram a mesma correlação: uma revisão de 47 estudos, publicada em 2014 e feita por professores das universidades de Princeton, Cornell e Berkeley, que concluiu: “nós encontramos forte evidência de que a ausência paterna afeta negativamente o desenvolvimento socioemocional das crianças”. Segundo os pesquisadores, “os efeitos sobre o desenvolvimento socioemocional continuam na adolescência”, com “forte evidência de que a ausência paterna aumenta o comportamento de risco em adolescentes”.

Por fim, mesmo superado um século de tragédias inacreditáveis em que o fascismo dominou abertamente a Europa e oriente, um século em que a violência foi amplamente incentivada pela necessidade de sugestionamento do jovem à guerra, os herdeiros desta era não parecem poder se dizer “bem sucedidos”. Mesmo agora, com a disseminação de armas amplamente reduzida, mesmo com o reconhecimento de que “o Iraque foi um erro”, a falência de instituições que necessitaram ser fortes para superar os conflitos globais abriu espaço para um novo período em que o desalento da criança impossibilita a formação do seu caráter e personalidade. Nos novos tempos se olvida muito mais a violência das escolas em que colegas de sala protagonizam chacinas entre os seus iguais.

Alfim, antes de debruçar-se sobre os fatores que atuam como gatilhos e provocações para os indivíduos deve-se questionar a condição de vulnerabilidade que permite a estes serem por eles influenciados. Afinal, as virtudes formam uma barreira intransponível entre o certo e o errado, o fazível e o impraticável, pois elas geram a repulsa à sujeição. Então, ainda que se exponha o indivíduo a certo fenômeno, o seu efeito é ressignificado, alternando entre a aproximação e o afastamento, tornando o primeiro mais ou menos suscetível ao segundo dependendo de sua natureza.

“Os jovens não mais tem uma hierarquia de valores”, Jordan Peterson.