Recentemente foi julgado o Habeas Corpus de nº 929002, em que o Superior Tribunal de Justiça, na pessoa do ministro OG Fernandes, avaliou a denúncia por crime de racismo acometido por um negro contra um homem branco italiano, após este ser chamado de “escravista, cabeça branca européia”, dentre outros termos.
Na denúncia, o Ministério Público alegou haver tipificação clara da conduta descrita no artigo 140, §3º do Código Penal, em que há injúria racial quando feita ofensa em razão de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Após avaliar o recurso, todavia, o ministro OG Fernandes entendeu pela impossibilidade de conceber o “racismo reverso”, visto que o crime deve ser analisado sob o ponto de vista do contexto histórico, dado desde a colonização, e o ofendido, no caso, era branco.
A existência do racismo não é possível sem a ideia de identidade racial, e esta, por sua vez, não poderia existir antes do conceito biológico de raça aplicado ao ser humano, segundo o qual há certa identidade comum entre um conjunto de indivíduos que compartilham certas características acidentais mais específicas como a cor.
Antes da visão antropológica, permitida pelo pensamento científico moderno, o homem escapava à inclusão plena no mundo natural por possuir um elemento que o aproximava do divino, um elemento racional que tornava a todos os homens iguais, apesar das diferenças em seus aspectos materiais, tratados não pelo nome de raça, mas por classificações quanto a locais, nações e culturas.
Evidentemente que sempre houve conflitos e, consequentemente, subordinação dos vencidos aos vencedores, mas jamais sob o aspecto de premissas raciais como a cor. Ao exemplo de Roma, todos aqueles estrangeiros ao império eram considerados bárbaros, fossem gregos, gauleses, egípcios ou persas.
Darwin desacreditou-se da excepcionalidade do homem como ser atribuído de moral e relação com Deus. Assim, suscitou a normalidade de subjugação de diferentes raças humanas a partir de conflitos em que aquela mais apta terminaria por extinguir a menos apta naturalmente. (DARWIN, Charles. A origem do homem e a relação sexual. Hemus. 1982, pág. 218)
A partir daí, a raça tornou-se subterfúgio para a hierarquização entre indivíduos mais ou menos qualificados, menosprezando os últimos e enaltecendo os primeiros, a partir de uma estratificação amparada em características acidentais.
Parece evidente que a possibilidade de depreciar características físicas ou culturais não é exclusiva de um grupo racial específico. Conceitualmente, não há fundamento lógico que justifique a tese de que apenas a cor escura, amarela ou parda possa ser objeto de menosprezo, ao passo que a cor branca estaria imune a tal possibilidade.
Mesmo assim, no caso do julgamento do recurso, expôs OG Fernandes que “a interpretação das normas deve considerar a realidade concreta e a proteção de grupos minoritários”. Dessa forma, o ministro destacou que a injúria racial só se configura quando há uma relação de opressão histórica – que supostamente não se verificaria no caso em discussão, em que o ofensor é negro e o ofendido é branco -.
Em se tratando do crime geral de ofensa, no Direito Penal brasileiro ocorrerem os chamados crimes contra a honra: calúnia (art. 138), difamação (art. 139) e injúria (art. 140). Com efeito, tanto a ofensa não precisa ser verídica (aquilo que se diz não precisa ser verdade) como o ofendido não precisa se sentir impactado para que o crime se configure, basta haver possibilidade de lesão à dignidade daquele que sofre com o ato.
Isto pois, objetiva-se resguardar a honra do indivíduo, que nada mais é do que a perspectiva social relativa ao mesmo. Como ele se vê e é visto pelo coletivo.
Em verdade, a Constituição Republicana garante, em seu artigo 5º caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Com efeito, se uma determinada lei protege a raça como identidade, e se não há mérito ou demérito entre os diferentes tipos de raça, a lei necessariamente, por virtude de silogismo lógico formal, deveria oferecer igual proteção a todos, criminalizando o racismo contra qualquer cor, sob pena de ser injusta.
Ocorre que, no tocante à ofensa racial, a proteção normativa é seguida literalmente, conforme interpretação restritiva, de que é preciso haver um período de subordinação histórica para que discriminar a raça branca seja punível como discriminar a raça negra o é – em outras palavras, é preciso um legado histórico de opressão e sofrimento antes do qual não é possível ser oprimido racialmente -.
Tal fato parece, no mínimo, ilógico. Afinal, se a existência de um regime histórico de opressão é condição para que determinada conduta seja reconhecida como racismo, quando esse período se torna concretizado? Qual seria o nível de catástrofe e duração necessária de subjugação racial para que uma ofensa à cor pudesse ser considerada racismo? Se o critério para a tipificação do crime é um “legado histórico”, e a história está em constante transformação, nunca haverá um marco definitivo que estabeleça o fim ou o início categórico desse legado ou período, bem como um parâmetro formal que mensure a quantidade de sofrimento empreendido para justificar a tipificação do crime.
Nesse sentido, a definição do que constitui racismo dependerá sempre de uma interpretação subjetiva e arbitrária de determinados grupos, enquanto que, contrariamente, a perspectiva de dignidade racial é absoluta e comum a todos, independendo de qualquer condição circunstancial.
Pelo sistema do Devshirme Otomano, o islamismo foi forçado a capturados cristãos para a formação dos soldados escravos Janízaros do sultão. Tártaros e Mongóis subjugaram eslavos durante séculos para garantir a manutenção do império com a mão de obra escrava no Oriente Médio e Ásia Central. O Império Otomano foi abastecido majoritariamente por expedições de captura e aliciamento de crianças do Leste Europeu até meados do século XIX.
A história é absolutamente farta dos exemplos mais nefastos de opressão étnica contra grupo de brancos europeus, o que não diminui em absolutamente nada a gravidade dos horrores frescos na memória pátria recente, mas enaltece a necessidade de reconhecimento de que todos somos iguais e dignos do mesmo tratamento.
Ao mesmo tempo, todavia, a memória histórica faz pensar quanto ao distanciamento da interpretação restritiva da lei, que a afasta da ideia de um instrumento de tutela universal ao fazê-la servir de maneiras diferentes aos iguais.
Eric Voegelin entendeu que “a raça, derivada de postulados ideológicos, tornou-se uma ferramenta, um instrumento de planejamento de ações” (VOEGELIN, Eric; HEIN, Ruth (Translator); VONDUNG, Klaus (Editor). The History of the Race Idea. From Ray to Carus. The Collected Works of Eric Voegelin Volume 3. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1998, 189p.). Assim, passou a servir de munição para aparatos normativos que mais e mais se afastaram da manutenção de direitos universais, primando projetos políticos ideológicos que mais pareciam distanciar as diferentes cores do que aproximá-las. A “raça” passou a ser utilizada como uma ferramenta político-institucional.
Ora, se a própria definição de ideologia empreende a aplicação de um plano ideológico, ou seja, não universal, mas relativo a algum interesse próprio de um grupo específico, advém, necessariamente, que o projeto racial-normativo deve razão a algo que não a manutenção do status comum de dignidade entre brancos e negros. Caso contrário, a defesa não seria ideológica, mas universal.
Nesse sentido, não faz forçoso intuir que, se o plano tem relação com um passado histórico, certamente faz mais sentido se não for olhado sob a óptica de algum tipo de compensação pelo mesmo. A raça deixa de ser o objeto de consideração da ação legal, a essência é substituída pelos acidentes, e a cor é subordinada à história que, mesmo lastimável, é contínua e trágica em diferentes níveis e formas para todos os tipos de indivíduos que, ao fim do dia, são igualmente dignos e merecedores de proteção e respeito.
Haverá uma declaração de combate efetivo ao racismo, per se, quando toda e qualquer ofensa à cor for considerada um crime, independente de qual seja.